DATAS COMEMORATIVAS NAS ESCOLAS BRASILEIRAS E ALIENAÇÃO
Eliane Pinheiro Fernandes
Faz muito tempo que me sinto extremamente incomodada com algo que considero bastante grave nas escolas por onde passei: a recusa dos educadores em refletirem, discutirem e organizarem projetos ou aulas que “desconstruam” a relação entre data comemorativa e consumismo. Todo início de ano é a mesma coisa: durante a reformulação do projeto pedagógico da escola não há espaço para um planejamento com ações voltadas à análise crítica das datas comemorativas. Comumente as professoras e professores improvisam uma atividade copiada de algum blog na internet ou das centenas de álbuns do “Picasa” com coelhos fofos e “papais noéis” graciosos. Há escolas que planejam melhor: economizam algum tipo de verba para contratarem um Papail Noel que dê pirulitos ou compram ovos pequeninos de chocolate aos montes… Quando questiono os colegas sobre a razão de ações como essas, geralmente respondem que “coitados, muitos desses meninos só terão esse pequeno ovo, pois são tão pobres que não ganharão um…”. Ora! Com a avalanche de propagandas de ovos de chocolate de toda sorte, tamanho, com e sem brinquedos dentro, a criança se sentirá consolada com um ovo de 50 gramas? Não. Continuará desejando um grande e pesado ovo de páscoa do Ben10. Sentir-se-á igualmente excluído, marginalizado, miserável. A perpetuação pelas escolas da figura de um Papai Noel que ao invés de dar um vídeo game ou uma bicicleta oferece um pirulito é irônica e cruel. A fome de dignidade e inclusão do pobre é sanada quando lhe ensinam que não é um fracassado, mas que o sistema capitalista é que é desumano, que pessoas inteligentes devem resistir bravamente à ordem imperativa da mídia: “Jesus nasceu! Vamos ao Shopping?”. O educador humanista não reproduz o sistema de consumismo, exclusão e marginalização, mas ensina aos seus alunos que as pessoas valem pelo que são, não pelo que têm. O filme brasileiro “Quanto vale ou é por quilo?”, do diretor Sérgio Bianchi¹ faz uma analogia interessante entre o período de escravidão e as políticas sociais brasileiras dos nossos dias. Mas o que me chocou mesmo foi relembrar da função dos negros capitães do mato: capturar negros fugidos. Fiquei pensando que se ao invés de incentivar a liberdade do pensamento, um professor apenas contribui em reproduzir os costumes e falácias capitalistas não estaria, da mesma forma, agindo como o capitão do mato?
O curioso é que a documentação pedagógica das escolas mencionam como objetivo “a formação de cidadãos autônomos, crítico e, participativos” (conforme constam nos Parâmetros Curriculares Nacionais²) e na prática não há espaço para que essas habilidades sejam desenvolvidas.
Tomemos como exemplo o famigerado velhinho de barbas brancas: quem é o papai Noel? São Nicolau foi um bispo turco, do século II d.c. que ajudava os pobres no inverno. Na Alemanha sua imagem era de um velhinho com roupas de inverno verdes ou marrom. No ano de 1934 a Cola-cola lançou uma campanha de marketing com São Nicolau (ou Santa Claus, como preferem os americanos) vestido de vermelho com botas e cintos pretos, cores do refrigerante. Um símbolo claro do capitalismo, é isso que as crianças pintam nas folhas mimeografadas nas escolas. E mesmo que se comportem bastante durante todo o ano, o “bom velhinho” não aparecerá em suas casas. Como diria a banda Garotos Podres³: “Papai Noel, velho batuta, rejeita os miseráveis. Presenteia os ricos e cospe nos pobres.”
Não há prática discente sem política, porque educação e política são uma coisa só. Ou estimulo meus alunos à criticidade ou reproduzo o sistema dominante. Paulo Freire (1996) confere aos educadores a missão de lutar contra o determinismo:
“Não se trata, obviamente, de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, de desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação não é o destino ou vontade de Deus, algo que não possa ser mudado. [...] Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra o que devemos lutar, tenho, enquanto educador, de me ir tornando cada vez mais competente, sem que a luta perdera a eficácia.
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto ou aquilo. [...] Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura”.
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto ou aquilo. [...] Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura”.
O tema “Datas comemorativas” é tão complexo que cabe ainda tratarmos outro aspecto que não pode ser ignorado: a imposição religiosa em um Estado Laico. Alunos judeus, budistas, testemunhas de Jeová, mulçumanos, ateus e evangélicos de algumas denominações que não comemoram Natal e Páscoa, são ignorados e convidados a pintar o coelho da páscoa e o Papai Noel. Ouvem sobre a ressurreição e morte de Jesus, independentemente do que crêem. Sou cristã apaixonada e não gostaria que me enfiassem goela abaixo que Maomé é um profeta messiânico que ascendeu aos céus, vivo, em um cavalo. Respeito, mas não é essa minha profissão de fé. Da mesma forma não devo também respeitar outras crenças que se distinguem da minha? A professora e autora do livro “Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico”, Roseli Fischman, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalizão de Cidades contra o Racismo e a Discriminação, responsável pelo capítulo sobre pluralidade cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em entrevista à Revista Nova Escola (2009) afirma que:
“No artigo 19 da Constituição, há dois incisos claros. O primeiro afirma ser vedado à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. O outro proíbe criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Ambos são os responsáveis pela definição do Estado laico, deixando-o imparcial e evitando privilegiar uma ou outra religião, para que não haja diferenças entre os brasileiros. Ora, se o Estado é laico, a escola pública, que é parte desse Estado, também deve sê-lo. [...]Não importa se a escola tem só um estudante de fé diferente (ou ateu) ou se 100% dos alunos e funcionários compartilham a mesma crença. A escola é um espaço público e deve estar preparada para receber quaisquer pessoas com o respeito devido. [...] A grande presença no interior das escolas brasileiras ainda é a de práticas católicas. De outros grupos, o que existe muitas vezes é a manifestação de valores e atitudes, voltadas para garantir respeito à sua identidade religiosa, para se defender de tentativas de imposição, notadamente dos católicos. [...]A religião não impede a violência. A idéia de que ela sempre faz bem é equivocada. Basta lembrar que grande parte das guerras teve origem em conflitos religiosos. Na escola, a violência deve ser combatida com o ensino ao respeito e ao reconhecimento da dignidade intrínseca a todos, não com o pensamento de que apenas as pessoas que acreditam na mesma divindade merecem consideração. [...]A escola pública não pode se transformar em centro de doutrinação ao sabor da cabeça de um ou de outro. O espaço público é de todos. Além disso, o respeito à diversidade é um conteúdo pedagógico. É importante aprender a conviver com as diferenças e a valorizá-las e não criar um ambiente de homogeneização, em que aquela pessoa que não se enquadra é deixada à parte ou vista com desconfiança e preconceito”.
Ignorar a presença das comemorações e influência das mídias em nossa sociedade também não contribui em nada na formação dos alunos como cidadãos autônomos e críticos. Cabe ao professor humanista aproveitar essas e outras datas, como o Dia das Crianças, Dia das Mães, Dia dos Pais… para desenvolver um trabalho bem planejado e teoricamente bem pautado.
ELIANE PINHEIRO
Notas:
1.BIANCHE, Sérgio. Quanto vale ou é por quilo? Produção e direção de Sérgio Bianche. Rio de Janeiro: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda, 2005.
2.BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução. 3 ed. Brasília: MEC, vol 1, 1997.
3. MAURO/MAO/SUKATA. Papai Noel, velho batuta. Garotos Podres. In: Mais podres do que nunca. LP, 1985, Rocker/Lup-Som.
4.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
5.FISCHMANN, Roseli. “Escola pública não é lugar de religião”. São Paulo: Revista Nova Escola Gestão Escolar, Edição 004, Outubro/Novembro 2009. Entrevista concedida a Amanda Polato.
Olá Eliane,
ResponderExcluirSimplesmente AMEI este texto!
Sou professora de Educação Infantil da rede pública de Sorocaba/SP e li neste texto tudo que
penso em relação às datas comemorativas na escola. Acredito, como vc, que o papel da escola é formar pessoas que reflitam e ñ apenas que "reproduzam".
Trabalho em uma escola onde a diretora comuna deste princípio e o grande obstáculo que encontramos é em relação aos auxiliares de educação que, sem reflexão alguma, defendem e reproduzem as datas comemorativas. Estamos trabalhando em prol a uma educação libertadora e quando leio textos com o seu, fico imensamente feliz em ver que não estamos sozinhas e nem falando algo absurdo.
Muito Obrigada!
Sou também professora de educação infantil.Gostei muito desse texto. Mas faço uma mas não gostei da parte que fala que o professor deve aproveitar as outras datas como dia das mães e dia das crianças. Porque essas duas datas são igualmente originadas na religião e reproduzem o da mesma forma o comercio. Por exemplo, a respeito do dia das mães: como as crianças que não tem mãe se sentem? Muitos educadores dizem: "entregue para alguém que seja como sua mãe"... Muitas crianças além de não terem essa pessoa sentem que isso fere a memoria de sua mãe. E quanto as novas conjecturas familiares brasileiras crianças com dois pais? Ou mesmo duas mães?
ResponderExcluirE quanto ao dia das crianças, que reproduz a mesma carência da páscoa a criança vai ganhar uma bonequinha de 1,00 R$ desejando um celular ou notebook.