Devemos dar às crianças na pré-escola a chave que abre a
porta da aprendizagem de matemática na escola, ajudando-as a compreender a
natureza da representação numérica e o uso de números na resolução de problemas
através de ações
A pré-escola tem o privilégio de abrir as portas da escola para as crianças,
mas qual é a chave que abre a porta da aprendizagem da matemática? Quais são e
de onde vêm as ideias matemáticas importantes que uma criança precisa
compreender a fim de aprender matemática na escola?
A matemática ensina,
entre outras coisas, a usar números para representar o mundo e pensar sobre ele.
Embora tal premissa pareça simples, há nela duas ideias cruciais: representar o
mundo usando números e usar os números para pensar sobre o mundo. Isso nos diz
muito sobre o que podemos trabalhar com os alunos na pré-escola para que eles
tenham a chave que lhes abrirá a porta da aprendizagem da matemática. Exploremos
um pouco essas ideias.
Compreender que os números são usados para
representar o mundo
Os números são usados para representar quantidades, e
é certo que hoje, na pré-escola, os alunos sejam ensinados a contar. Contar
corretamente exige algumas habilidades cognitivas: precisamos usar um sistema
para contar cada um dos objetos, sem deixar de contar nenhum, ao mesmo tempo em
que nos certificamos de que contamos cada um deles uma só vez. Quando terminamos
a contagem, sabemos quantos objetos formam aquele conjunto. Porém, nossa
habilidade de usar números para representar quantidades não se restringe a
contar elementos e aplicar um rótulo à quantidade. Uma representação numérica
deve servir para muito mais do que isso, uma vez que, a partir de números,
podemos saber se duas quantidades são iguais ou não e qual delas é maior caso
sejam diferentes.
Para tirar conclusões a partir de números, as crianças
precisam compreender algo a respeito da representação numérica. A pré-escola é o
lugar ideal para explorar as conclusões a que podemos chegar quando usamos
números para representar quantidades.
As situações descritas a seguir
podem ser usadas como motivação para trabalhar a compreensão da natureza da
representação numérica, indo além da aprendizagem da rotina da contagem. Estudos
pioneiros sobre como as crianças usam números para representar quantidades foram
realizados por Piaget e estão descritos em seu livro sobre a concepção de número
da criança. Muitos outros estudos foram feitos posteriormente, e seus resultados
oferecem sugestões interessantes para o ensino de matemática na pré-escola.
Imagine a seguinte situação: uma criança reparte igualmente um conjunto
de figurinhas entre dois amigos, Márcio e Paulo. Ela conta o número de
figurinhas de Márcio e diz: "Ele tem 9". Se realmente compreender a função
representativa dos números, ela deverá concluir que Paulo também tem 9, porque
os dois receberam a mesma quantidade de figurinhas. No entanto, um estudo
realizado na Inglaterra (Frydman e Bryant, 1988) demonstrou que apenas 40% das
crianças de 4 anos sabem responder quantas figurinhas Paulo tem sem contá-las.
Uma das ideias básicas para se compreender a natureza da representação numérica
é que quantidades equivalentes são representadas pelo mesmo número, porém muitas
crianças ainda não descobriram a importância da equivalência. Portanto, é
essencial que na pré-escola a criança tenha a oportunidade de pensar sobre a
função representativa dos números e a importância da equivalência nesse
contexto.
Outra situação interessante refere-se à escolha do número que
representa a quantidade após a contagem. Quando ensinamos as crianças a contar,
basicamente lhes ensinamos uma rotina que envolve o uso da correspondência um a
um e o uso do último rótulo numérico para representar o conjunto. Elas aprendem
isso relativamente bem e são capazes inclusive de identificar os erros cometidos
por um fantoche manipulado por um adulto que, por exemplo, contou o mesmo objeto
duas vezes. Contudo, nem sempre compreendem que, se o boneco errou na contagem,
o rótulo que o fantoche usar para representar a quantidade não representa o
número de objetos no conjunto. Algumas crianças pensam que o número que o
fantoche disse representa corretamente a quantidade, mesmo que o fantoche tenha
contado errado (Freeman, Antonuccia e Lewis, 2000). Essa é outra questão a ser
explorada com crianças pré-escolares com o objetivo de ajudá-las a pensar sobre
a natureza da representação numérica: quando o fantoche contou um mesmo objeto
duas vezes, qual será o número de objetos no conjunto?
Outras situações
interessantes para se explorar a natureza da representação numérica envolvem
variações em relação aos erros na contagem. Se o fantoche pular um objeto
durante a contagem e terminar a contagem no número 7, quantos objetos esse
conjunto tem? A dedução de que são 8 objetos é necessária para uma criança que
compreende a natureza da representação numérica em nosso sistema de contagem.
Porém, muitas crianças não conseguem chegar a nenhuma conclusão quanto ao número
certo de objetos, mesmo tendo identificado o erro do fantoche durante a
contagem.
E se o fantoche contar usando a correspondência corretamente,
mas começar a contagem a partir do número dois? A que conclusão as crianças
chegam quando se pergunta quanto objetos há no conjunto? Outra variação
interessante explorada em estudos recentes foi usar um fantoche que contava de
trás para frente. Por exemplo, dado um conjunto com 4 objetos, o fantoche
apontava para os objetos e dizia 4, 3, 2, 1. A que conclusão as crianças chegam
quando o fantoche conta de trás para frente? E se o conjunto tiver 4 objetos e o
fantoche começar contando 5, 4, 3, 2?
Diferentes pesquisadores (Bermejo,
Morales e deOsuna, 2004) mostram que refletir acerca do processo de contagem sob
a orientação de um adulto influencia positivamente o desenvolvimento da
compreensão da natureza da representação numérica. Após refletir sobre uma
situação - por exemplo, a contagem a partir do número 2 -, as crianças
demonstravam ser capazes de deduzir corretamente o número de objetos em outra
situação - por exemplo, quantos objetos há no conjunto quando o fantoche contou
o mesmo objeto duas vezes.
Além de ensinar a contagem na pré-escola como
uma rotina fixa, o professor pode ainda criar situações que provoquem a reflexão
sobre a representação numérica. Os estudos que investigaram essas situações
envolveram alunos cujo conhecimento da contagem era relativamente restrito, não
indo além de dez, mas estava bem-estabelecido nessa faixa numérica. Nos estudos
em que a contagem foi executada erroneamente, ela foi feita por um fantoche,
apresentado às crianças como um aluno novo que estava aprendendo a contar e que
algumas vezes contava corretamente, mas outras vezes cometia erros. Como as
crianças estavam ajudando o fantoche, estavam em uma situação social que lhes
permitia dizer a ele que não havia acertado.
Aprender a usar os
números para pensar sobre o mundo
Uma das contribuições mais relevantes
da teoria de Piaget para a educação matemática foi sua hipótese de que a origem
dos conceitos matemáticos elementares está na ação. Essa hipótese tem ampla
aceitação hoje, e sua implicação para a educação pré-escolar é considerável.
Para explicar melhor, consideremos um problema desenvolvido a partir de uma das
questões originalmente estudadas por Piaget (Nunes e Bryant, 1997).
Eis o
problema: apresentamos à criança uma fileira de casinhas (por exemplo, quatro) e
dizemos que em cada casinha moram três coelhos. Pedimos a ela que tire de uma
caixa o número certo de bolinhos de cenouras, de modo que possamos dar um
bolinho para cada coelho. Esse problema exige raciocínio multiplicativo e pode
parecer muito difícil para as crianças da pré-escola. Porém, mais da metade das
crianças de 5 ou 6 anos consegue resolvê-lo corretamente. Nessa idade, elas
compreendem que precisam estabelecer uma correspondência um a muitos entre casas
e bolinhos. Como são três coelhos em cada casa, elas colocam três bolinhos
diante de cada casinha, ou seja, resolvem o problema completamente através de
ações.
Outras crianças contam bolinhos imaginários enquanto apontam para
cada casinha: contam 1, 2, 3 em correspondência à primeira casa; 4, 5, 6 em
correspondência à segunda casa, e assim por diante, resolvendo o problema
através de uma combinação de ações e representação numérica. Outras conseguem
até mesmo resolver o problema com lápis e papel, desenhando o número de bolinhos
necessários para que cada coelho ganhe o seu. Entretanto, quando a razão entre
coelhos e casas aumenta, o problema torna-se mais difícil.
À medida que
as crianças resolvem problemas sobre quantidades, elas estão aprendendo a
organizar suas ações para resolver problemas com números. Na pré-escola, elas
devem ter a oportunidade de usar materiais concretos ou números, segundo sua
preferência, e também desenhos. Os problemas devem ser variados e resolvidos por
meio de ações diferentes, como juntar, separar ou distribuir objetos, pois assim
elas terão a oportunidade de refletir sobre situações nas quais operações
aritméticas diferentes são usadas.
É igualmente importante variarmos o
elemento que não é conhecido na situação. Por exemplo, um problema de subtração
pode dizer o número inicial de bolinhas de gude que um menino tinha e quantas
ele perdeu, perguntando-se quantas bolinhas ele tinha no final. Pode-se ainda
criar situações em que se pergunta quantas bolinhas ele perdeu. Por exemplo: um
menino tinha oito bolinhas de gude. Ele colocou as bolinhas no bolso e foi
visitar um amigo, mas o bolso estava furado. Quando chegou à casa do amigo, ele
só tinha 5 bolinhas. Quantas bolinhas o menino perdeu no
caminho?
Finalmente, convém usarmos situações-problema para promover a
reflexão sobre a relação inversa entre adição e subtração, um conceito que está
ao alcance de muitas crianças na idade pré-escolar, mas não é compreendido por
todas elas quando ingressam na escola. Esse conceito serve de base a
aprendizagens que terão lugar na escola. Podemos, por exemplo, mostrar às
crianças um bastão feito com oito blocos amarelos e contar os blocos com elas
para que saibam exatamente quantos blocos foram usados. Em seguida, escondemos o
bastão embaixo de um pano, deixando apenas sua extremidade
visível.
Sempre salientando nossas ações, para que as crianças acompanhem
o processo, adicionamos quatro blocos vermelhos ao bastão e retiramos os quatro
blocos. Então perguntamos a elas quantos blocos formam o bastão agora. Essa
situação, em que os blocos somados e retirados são de cores diferentes, é
simples e facilita a compreensão da relação inversa, pois a criança está
observando a extremidade do bastão e verifica que nenhum bastão de cor diferente
ficou no bloco. Quando a situação já foi compreendida, podemos aumentar
progressivamente sua dificuldade, usando blocos da mesma cor, adicionando e
retirando um número de blocos que difere em uma unidade (por exemplo,
adicionando 3 e retirando 2) e adicionando os blocos em uma extremidade, mas
retirando-os da outra. É fundamental estimular a criança a resolver o problema
sem contar.
Nossos estudos (Nunes et al., 2007) mostraram que as
crianças que ingressam na escola com uma boa compreensão da relação inversa
entre adição e subtração, assim como uma boa habilidade de resolver problemas
usando ações e contagem, têm uma ótima chance de sucesso na aprendizagem de
matemática. Portanto, devemos dar às crianças na pré-escola a chave que abre a
porta da aprendizagem de matemática na escola, ajudando-as a compreender a
natureza da representação numérica e o uso de números na resolução de problemas
através de ações.
Terezinha Nunes é professora do Departamento
de
Educação da Universidade de Oxford (Reino
Unido).
terezinha.nunes@education.ox.ac.uk
BERMEJO, V.; MORALES, S.; deOSUNA, J.G. Supporting
children's development of cardinality understanding. Learning and Instruction,
n. 14, p. 381-398, 2004.
FREEMAN, N.H.; ANTONUCCIA, C.; LEWIS, C.
Representation of the cardinality principle: early conception of error in a
counterfactual test. Cognition, n. 74, p. 71-89, 2000.
FRYDMAN, O.;
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children. Cognitive Development, n. 3, p. 323-339, 1988.
NUNES, T.;
BRYANT, P. Crianças fazendo matemática. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
NUNES, T. et al. The Contribution of logical reasoning to the
learning of mathematics in primary school. British Journal of Developmental
Psychology, n. 25, p. 147-166, 2007.